Túneis de realidade

Robert Anton Wilson, um escritor/orador/filósofo/psicólogo americano do século XX, usava o termo “reality tunnel” para explicar que o que alguém vê não é necessariamente o que existe, mas apenas o que existe aos seus próprios olhos. É algo que pode ser bem explanado em português coloquial como “quem o feio ama, bonito lhe parece”. Mostra bem a forma como algo que para quase todos os comuns mortais pode parecer um movimento peristáltico de Pollock, quando visto através de outros olhos pode perfeitamente aparentar uma obra de Boticelli.

O mesmo se passa no futebol, a outro nível. À medida que as notícias iam avançando sobre a venda de Hulk, as comparações com a venda de Witsel, pelo mesmo valor, por menos valor, por um valor mais disperso, com ditórios e contraditórios a serem disparados por todas as partes interessadas desde o SEF ao Tribunal de Contas russo, passando até (ignomínia!) pelos próprios clubes que estiveram envolvidos nas transacções, vejo-me a olhar para todo este espectáculo circense com a atenção de um miúdo numa aula de Matemática. Enquanto passo as vistas pelos jornais desportivos, cada um a puxar para seu lado numa manifestação parva de comercialismo bacoco que a maior parte devora com avidez e engole todas as notícias com cunho editorial bem presente que lhes são enfiadas pelas goelas, reparo que raro é o indivíduo que fala do que realmente devia interessar a um adepto de futebol: perderam-se dois excelentes valores no campeonato. E alheando-me do belga, cuja saída só me diz respeito porque enfraquece um rival, tento-me focar no nosso interior, no que temos à mão para suprir a falta de um elemento pivotal de há anos a esta parte. E procuro informação, busco inspiração a blogues amigos, a outros não-tão-amigos, falo com A, K, X, mas todos falam do mesmo. Das contas, dos 13.7% que foram parar ao fundo de protecção do coalas albinos e mais 0.49% + IVA que seguiram para a empregada de limpeza, do gajo que custou mais apesar de ter custado menos, das percentagens das comissões, dos incendiários que avançam com catana em riste para terminar com luvas brancas, sujas da imundície a que estão habituados. Os comunicados, para cá e para lá, as piadas, as insinuações, a risota, a loucura. O futebol, aquele da relva e das balizas, esse deixa-se para segundo plano, como de costume. Devo ser dos poucos que se está a obrar para as contas. Palavra. Essa treta de bater no peito quando se fazem mais uns trocos que outros não é para mim. Já foi, pois já, mas cresci. Evoluí, talvez seja o termo mais adequado.

E no meio deste puro desterro da nossa não-cultura futebolística, enfia-se um castigo. Torpe, fraco, pobre de espírito, incapaz de punir o que deve ser punido, seja qual fôr o tom da camisola que ostenta. E já nem surpreende a forma como este tipo de actos se vão repetindo no nosso quinhão de terra arrancado a romanos, sarracenos ou castelhanos. Tudo é previsível, frio, sem alma, sem vigor nem justiça, onde todos dizem o que querem quando querem e ninguém está disposto a pôr as botas no chão e dizer “basta!”. São estes os túneis de realidade de que falava no início. São estas as visões próprias de quem só tem a sua visão, quem olha para o que quer e se sente desfasado porque estão todos a olhar para outro lado. E a pureza que eu, o ingénuo, ainda acredita que possa vir a vingar, não conta.

E se há alguém com motivos para estar triste perante toda esta enormidade de parvoíces, não é o Ronaldo. Sou eu.

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Pass imprecise

  • Primeiro cenário: Otamendi tem Maicon ao lado direito, na posição natural que ocupam durante todo o jogo, todos os jogos. Vê Moutinho a trinta metros, com um adversário à sua frente. O argentino olha para as peças em campo, avalia o fluxo mental que lhe permite uma melhor probabilidade de sucesso e decide passar pelo ar. A bola sai alta e longa demais, o português não chega mas bate palmas ao esforço, Otamendi levanta o braço e pede desculpa. Bola para o Gil Vicente.
  • Segundo cenário: Danilo sobe pela linha, correndo como o papa-léguas a fugir do imbecil do coiote. Chega a um certo ponto em que vê que não vai conseguir avançar mais no terreno sem ter de se transformar em Hulk e fintar sete adversários que estão imediatamente à sua frente, olha para o lado, recua um pouco e pesa as opções. Opta então por uma lateralização para Varela, que está então no flanco oposto, e envia a bola como se tivesse sido possuído temporariamente pelo espírito sempre presente de Guarín, acertando no esférico com a força de mil titãs e rodando como os pneus do carro do Alonso em Silverstone. A bola sai alta e longa demais, o português não chega mas bate palmas ao esforço, Danilo levanta o braço e pede desculpa. Bola para o Guimarães.
  • Terceiro cenário: Maicon dirige-se para a lateral, encurtando o espaço e o tempo para tomar uma decisão. Olha para cima, vê Atsu a sessenta metros, decide enviar-lhe a bola numa mudança de flanco que faria inveja a Beckenbauer. A bola sai alta, o ganês não chega mas bate palmas ao esforço, Maicon levanta o braço e pede desculpa. Bola para o Olhanense.

Experimentem trocar os intervenientes e o adversário. O resultado é o mesmo. Há semanas, meses, anos que o resultado é persistentemente o mesmo na vasta maioria de circunstâncias que decorrem mais ou menos como estas que acima descrevi. E o adepto, o que joga a bola aos sábados e fá-lo por carolice em vez de o fazer por um ordenado, tem aquela sensação estúpida que lhe ultrapassa a mente e o discernimento e só pensa: “Porque raio é que não meteste a bola no teu colega do lado?!”. Não sou jogador de futebol, nem sequer tenho contacto directo com alguém que o seja, por isso é complicado para mim conseguir penetrar na psique de muitos destes rapazes. Mas se há uma coisa que nunca vou conseguir entender é a necessidade que tantos têm de fazer o mais difícil só porque na altura lhes pareceu a melhor opção.

E é por isso que admiro cada vez mais jogadores como Xavi, Pirlo ou Moutinho. Porque sabem que a opção mais simples é sempre a melhor. E se Robson pedia “pass precise” em todos os treinos, não faço a menor ideia do que Vitor Pereira lhes pede. Mas não podem ser as mesmas coisas.

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O meu primeiro derby no Bessa

Regresso mais uma vez a 1994. Quase 1995. Mais concretamente ao dia trinta e um de Dezembro de mil nove e noventa e quatro. O meu primeiro jogo oficial do FC Porto fora das Antas. Que melhor local para o desfloramento nas deslocações ao exterior que na própria cidade, num derby? O cenário: Bessa. O Bessa antigo, com o Boavista antigo, aquele que dava luta a todas as equipas mas principalmente à nossa, em que cada jogo era tratado como se fosse uma questão de vida ou morte. Os adeptos incendiados de um ódio perene e intransmissível, encaravam sempre os clássicos da própria urbe como uma batalha pessoal, dura, violenta, um duelo com sabres até que o torpe oponente caísse numa poça da própria imundície. Eram jogos rijos, tanto nas Antas como na Boavista, mas quando os axadrezados estavam perante o próprio público…amigos, os guerreiros ainda era mais cruéis, mais agressivos, mais brutos, com faces ruborizadas e relâmpagos nos olhos, o anormal do laço agarrado às redes e um estádio a gritar vis insultos aos irmãos do burgo.

Foi neste cenário bucólico que um rapazola, enérgico com a força própria que todos têm na idade da estupidez adolescente, decide ir ver o jogo. Último dia do ano, reveillon pronto para arrancar, famílias reunidas em casa, muita água a cair dos céus lá fora e a bancada norte do Bessa cheia de Portistas, sem protecção contra a natureza que não nos queria lá a nenhum custo. O frio apertava e a chuva, inclemente, caía sobre as nossas faces impelidas por um S.Pedro boavisteiro. Mas os corpos, tão frios por fora, ardiam por dentro.

As equipas eram grandes. A nossa e a deles. Avançávamos com grandes lusos. Baía, Pinto, Santos…Folha. Dois grandes russos. Kulkov, o calmo, tranquilo, pacífico Vassili. E o irreverente, Serguei “olha para mim a conduzir como um louco na Avenida da Boavista” Yuran. E o resto? Brasileiros. Aloísio = Classe. Zé Carlos = Inteligência. Emerson = Força. Uma tríade de perfeição futebolística no Bessa. Do lado do inimigo, um misto de experiência, loucura, velocidade, perfeição e talento. Querem nomes? Nogueira, Bóbó, Artur, Timofte e Sanchez. Chega? Chega. Era um excelente Boavista. Acabaram em 10º a cinco pontos da Europa. Mereciam mais.

O jogo começa. Duro, como se espera. A bancada abana, sofre, inunda a zona oeste da Invicta com cânticos, todos saltam, todos gritam, todos vibram. Os dois miúdos, o jovem e o amigo, também vibram, também gritam, também saltam. Embriagados com a emoção da partida, reunidos no meio dos correlegionários, apoiam e incentivam a equipa. E é no meio desta espiral de loucura futebolística que o Boavista marca. Sanchez, lá ao fundo, na baliza por baixo da bancada sul. A moral que roçava os cabelos nas nuvens do Valhalla caiu-me aos pés. “Foda-se”, gritei, “Havias de morrer, boliviano de merda!”. Corrigiram-me, diziam que era colombiano. “Boliviano, chavalo!”, respondi, “é um filho da puta dum merdas, mas é boliviano!”. Queria lá eu saber de que raio de antiga província hispânica da sudamerica ele vinha. Tinha-nos marcado um golo. Odiava-o naquele momento.

Não me lembro dos nossos golos. Chovia muito e estava longe, naquela gélida e elevada bancada no topo Norte do estádio. Vi-os ao longe, aos gritos. Vi Emerson a marcar e a empatar a partida, vi Kulkov a colocar-nos de novo na posição onde merecíamos. Enquanto Robson saltava no banco, um autoclismo voou para junto de Alfredo, rodeado de inúmeros isqueiros e moedas no relvado, porque telemóveis naquela altura estavam tão longe dos nossos bolsos como a prancha de skate do Marty McFly. Vencemos o jogo. Depois de terminado e de esperar na bancada que nos mandem para a saída, vou conversando com amigos, cantando aos nossos heróis, celebrando mais uma vitória no campo do inimigo. Era Cipião em Cartago, McCarthy nas Filipinas, Monty em El-Alamein. Triunfante, fora do estádio, ainda quente por dentro mas tremendo de frio por fora, voltei a sair, para festejar o novo ano que estava ali mesmo à beirinha.

Um derby, à antiga. Daqueles que, ao ritmo que as coisas vão andando, nunca mais vou voltar a ver.

PS: Sei bem que a foto não é desse jogo. Mas estamos a festejar o título no Bessa, em 1992. Pareceu-me adequado.

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New season resolutions

Começa já no Domingo, em Barcelos. Até Maio vai ser o circo habitual de treinos fatigantes, viagens cansativas, jogos massacrantes e conferências de imprensa exaustivas. A rimar e tudo, vejam lá. E em todos os arranques de campeonato há a eterna dúvida que me persegue já há tantos anos: que tipo de adepto vou ser durante a temporada nos jogos ao vivo? Serei o tolinho adolescente que em 1993 insultou o Mihtarski por não meter um miserável golo ao Famalicão? Talvez o doente que saltou no golo do Jardel ao Sporting em 1997 numa chuvada absurdamente intensa que me deixou mais molhado que se tivesse estado a levar com a água nos beiços desde o início do jogo? Ou o calmo, pacífico, olímpico, tranquilo rapaz sentado nas bancadas enquanto o FC Porto cravava cinco no Santa Clara para terminar em grande a temporada de 2002/2003? Vejo aqui um padrão…algumas das memórias mais vincadas ainda são do tempo das Antas. De qualquer forma, compus uma lista de pequenas promessas que fiz para 2012/2013, que creio podem fazer de mim um melhor adepto ou, na pior das hipóteses, uma pessoa mais normalzinha e adaptada ao mundo moderno. A lista, meus caros, é esta, aplicável aos jogos a realizar no Dragão:

  1. Chegar aos jogos com tempo suficiente para uma urinadela e/ou um café;
  2. Ostentar sempre uma peça de vestuário com as cores do clube. Preferencialmente camisola e/ou cachecol;
  3. Procurar perceber as opções tácticas do treinador antes de começar a criticar as mesmas;
  4. Não tentar encontrar o “novo Mariano” em qualquer jogador que controle mal uma bola;
  5. Em caso de resultado negativo, acreditar que a reviravolta é sempre possível e eles conseguem se quiserem, carago;
  6. Abster-me de proferir a seguinte frase: “Tenho frio. Tenho fome. Foda-se.”;
  7. Aplaudir o lateral quando sobe ao ataque, avisá-lo quando deixa o sector sem cobertura;
  8. Criticar o que é criticável e elogiar o elogiável, sem arranjar desculpas;
  9. Perceber melhor o que o adversário vale e como o podemos parar;
  10. Por último, manter a postura: NUNCA assobiar a equipa!

Alguém tem resoluções diferentes?

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E assim vamos andando, com a Dinamarca no horizonte…

(…)

Jorge: é muito mais fácil dizer mal só porque sim
Amigo do Jorge: olha que nao foi isso que vi no post sobre o jogo da selecção…começas logo por dizer que somos pequeninos…
Jorge: sim, na forma de pensar, e seremos sempre enquanto continuarmos a pensar que “isto é para empatar” desde início. havia muito a perder? claro. mas já vi atitude a vencer talento muitas vezes.
Amigo do Jorge: hmm… tenho serias duvidas que eles entrem a pensar que vale a pena esforçar-se porque vao empatar e tu, como formador de opinioes que és, tens a responsabilidade de nao arrastar as pessoas que te lêem para esse tipo de pensamentos quando devia ser ao contrário.
Jorge: eles entram a pensar que se vão esforçar para aguentar o ataque do adversário e se conseguirem vão tentar ganhar…então achas que devia enaltecer o “estivemos bem porque só perdemos por um”? e porque durante 15 minutos tentamos muito muito? E repara que eu até acho que nem jogamos mal tendo em conta o que estava à espera depois da qualificação…mas a forma como os vi a lutar deu-me mais uma indicação dessa pequenez, porque se conseguimos lutar com empenho e trocar a bola com alguma inteligência, só falta entrar em campo para ganhar! Carago, aquela equipa de 2006 sabia as limitações que tinha e não jogava nada de especial, mas via-se ali que havia inteligência…agora não consigo dizer bem da equipa só para aliviar a pressão mental de uma vitória moral quando de facto se perdeu.
Amigo do Jorge: mas nao estás a ser coerente, pelo menos quando fazes a comparação com a equipa de 2006. afinal perdemos por falta de inteligencia ou por sermos pequeninos? ou por acharmos que somos grandes quando somos pequeninos?
Jorge: nós perdemos porque pensamos sempre que somos pequeninos. quando jogamos contra a Alemanha somos pequeninos e eles são grandes, são muito bons…e quando nos ganham nós em vez de dizermos: “foda-se, perdemos contra gajos bons mas não fizemos nada de jeito e para a próxima vez temos de ganhar esta merda e já devíamos ter ganho hoje e isto NUNCA mais pode acontecer porque eles não são melhores que nós”, a única coisa que fazemos é assobiar para o ar porque falhamos dois golos de baliza aberta e mandamos uma bola ao poste. ficamos a pensar no ridiculo do “ai se a bola tivesse entrado”, como se os nossos não conseguissem criar mais 10 ou 20 oportunidades iguais. penduramo-nos naquelas pequenas merdices e usamo-las sempre como se fosse a única hipotese de salvação…em vez de pensarmos em fazer mais e melhor. por isso, respondendo à tua pergunta, nós não sofremos por arrogância (dentro de campo, cá fora é diferente). perdemos por pensarmos que somos pequeninos e agirmos como se fossemos pequeninos. e assim nunca vamos ser grandes. Já em 2006 notava-se que havia ali uma arrogância saudável, uma perspectiva de “nós conseguimos, carago, venha quem vier!!”. e é isso que falta nestes gajos.

A Dinamarca é já ali.

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