The greatest scarf in the sky

FCP_meuclube

Tive a sorte de estudar no Porto, perto da família, dos amigos e daqueles pedaços de nada que damos como garantidos e sem os quais sentimos que algo está mais distante, ausente do coração e da convivência diária dos lugares-comuns que nos trazem o conforto que precisamos nas piores alturas. E tive também a sorte de poder começar a trabalhar fora da minha zona de conforto, seguindo para fora do país, regressando mais tarde à base de onde saí e que tanto me deu. E em todo esse percurso já feito e tanto que ainda por aí há-de vir, houve muita gente que me marcou pela forma de ser ou pelo simples facto de ter estado no sítio certo no lugar certo.

Uma dessas muitas pessoas (outras poderão ter referências mais tarde ou mais cedo aqui na roulotte) foi um professor que tive na faculdade. Aulas práticas de uma disciplina que fazia parte integrante do curso mas que me aprazia tanto como receber um remate do Hulk nos dentes à queima-roupa, e da qual tentava a todo o custo desenrascar uma miserável nota que me permitisse dizer adeus à incansável fome por jovens repetentes nos obscuros meandros da mediocridade universitária que aquela disciplina em particular parecia exibir a cada semestre que passava. Ou era eu que estudava pouco e não atinava com aquilo, vá-se lá procurar razões ao esfíncter do mundo. Esse titã da academia era facilmente identificável pela sigla que todos os professores recebiam e que os representava em horários, anúncios públicos ou endereços de email ou de sites pessoais. E marcou-me durante muitos anos a forma coloquial com que tratava os alunos, sem distinção de classe ou categoria, onde todos caíam na sua teia de vernáculo bem apurado desde o primeiro segundo em que colocavam tentativamente os pés dentro da sua sala de aula. Era uma personagem, nunca perdida nos corredores das memórias que levamos connosco para todo o lado e à qual recorremos sempre que nos dá para a nostalgia.

Encontrei-o mais tarde, alguns anos depois de sair com o diploma bem agarrado nas mãos que na altura já trabalhavam e que pouco se preocupavam com os temas que aprendi enquanto estive sob a alçada do homem de que vos falo. E entrei em contacto com ele por culpa do FC Porto. Um dado dia estava a fazer umas pesquisas e descobri um site sobre cachecóis do FC Porto, onde uma honrosa colecção estava disponibilizada para qualquer visitante poder vasculhar binariamente e deliciar-se com os pequenos nacos de história e memória que por ali iam sendo publicados. E, para meu espanto, era mantido e actualizado pelo meu professor. Tinha na altura diversos cachecóis antigos e não tendo grande uso para eles, decidi enviar-lhe um email para nos encontrarmos e para o poder presentear com mais algumas valiosas adições à sua então extensa colecção. Marcámos encontro para um café na Constituição, perto do campo que continuará a ter o seu nome mesmo com mil parcerias comerciais a tolharem-lhe a tradição. Reconheceu-me mal entrei. “Você foi meu aluno!”. “É verdade”, respondi, “mas pensei que não se fosse lembrar de mim, Professor. Éramos tantos naquela cadeira!”. “Eu tenho uma memória de elefante, caralho, entra e não sai!”. Assim. Logo assim, a seguir ao “boa tarde” coma vírgula que nos destaca dos mortais tugas nervosos por pecar mais pela palavra que pelos actos. Este, do Porto, clube e cidade, viveu os anos do pré-e-pós-Pedroto, falou-me do golo do Ademir e da estúpida explosão de loucura que se viveu nas Antas. Falámos de Sevilha e Viena, de Gelsenkirchen e de Basileia, pedaços da história que guarda para ele e partilha com quem ouve e quem gosta de ouvir. Ofereci-lhe os cachecóis, agradeceu amavelmente e fizemos planos de um dia voltarmos a dar duas de treta. Nunca mais o vi e estes planos desaparecem tão depressa nestes dias que tanto correm sem se saber muito bem para quê nem para onde.

Semana passada tive notícias da sua morte. Perdeu-se um portista, um bom professor e um bom homem. Do mal o menos: o céu ganhou uma nova colecção e está mais azul-e-branco. Com lã ou acrílicos estampados.

16 comentários

  1. Bom dia.
    Pois é, o mundo é pequeno, o Prof. Fraclim também foi meu professor ainda a FEUP era na rua dos bragas.
    Um RIP para ele e meus sentimentos à família.
    Um bem haja para ti Jorge.

  2. Caro Jorge, perdeu-se, de facto, um enorme ser humano. Também eu tive a felicidade de o encontrar e de assistir às suas aulas naqueles espectaculares “anfiteatros do central” :)
    Excelente pessoa, excelente professor e, pelos vistos (desconhecia até ao “caso” dos cachecóis) um portista de excelência… até sempre FFF!

  3. Adoro a insustentavel genialidade desta frase “e da qual tentava a todo o custo desenrascar uma miserável nota que me permitisse dizer adeus à incansável fome por jovens repetentes nos obscuros meandros da mediocridade universitária que aquela disciplina em particular parecia exibir a cada semestre que passava”. Ai como a conheco e como a amaldico-o num pais perro de visao-ferrugem. Mas o que socobra e mesmo a falta que fazem as boas pessoas que entendem e partilham das nossas paixoes.

      1. kkkk, ora nem mais… aquela nossa cantina com barrotes no chão que faziam de nós exímios atletas de obstáculos!!!!
        Nada passou a ser como dantes!!!

  4. De facto é um belo texto. Os meus pêsames para a família e amigos.

    Curioso que actualmente estudo na FEUP e nasci em Paranhos tal como o senhor Franclim. Sempre Porto. :)

    Vou sempre com o meu cachecol ao Dragão, mas nunca fui coleccionador. Aliás, eu só tive dois e só arranjei o segundo depois de perder o primeiro na viagem de volta de uma final da Taça no Jamor. É o que dá meter os cachecóis mal presos na janela… haha

    Que a colecção continue!

  5. O Professor Frankclim morreu? Fico triste com a notícia. E, simultaneamente, feliz, por me ter feito lembrar das aulas que frequentei. Bons tempos… aqueles das aulas do “FFF” (Franclim Fortunato Ferreira)…

  6. Sou um simples trabalhador que se ficou pelo 12º, o que não invalida a minha constante “fome” de aprender, aprender e continuar a aprender até ao dia da minha morte. Este post bateu-me em cheio pela beleza literária com que o amigo Jorge escreve.
    Deixe-me desde já dizer-lhe que o amigo tem veia de escritor. Não um Camilo ou um Ortigão, mas um Eça ou quiçá um Julio Dinis. E coincidência ou talvez não, todos eles nortenhos….

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