
Nos primeiros anos que comecei a ver o FC Porto ao vivo, na altura atravessando aquele caminho para o idílio desportivo que era a subida por Fernão de Magalhães acima, para lá da Velásquez, cortando pelo meio dos campos de treino e continuando até à entrada da Sul ou da Bancada (havendo mais ou menos dinheiro no bolso, contra-respectivamente), altura em que a alegria e o entusiasmo me inundavam com a fresca sensação de juventude e devil-may-care que faziam de mim feliz. E em vários jogos saí do Estádio a lamentar ter-me lá deslocado, algo que raramente faço hoje em dia, talvez por ter ganho um estofo um bocadinho mais espesso do que nessa altura me poderia gabar.
Lembro-me de um jogo que propiciaria um desses desterros, qualquer empate em casa contra o Paços ou o Famalicão (não a famosa derrota dos noventa remates contra um…que deu a vitória aos gajos), enquanto Ivic passava pela segunda vez pela cidade que tanto tinha engrandecido com as vitórias na Intercontinental e na Supertaça Europeia. Estava eu na bancada central, num belo dia de sol, quando a equipa engonhava em campo, falhava remates, jogava com pouca vontade e não assumia uma postura digna perante um adversário lutador e pouco dado a parvoíces. À medida que o jogo ia avançando e o resultado se mantinha a zeros, o povo começava a ficar cada vez mais tenso, menos propenso a apoios e incentivos, com a tradicional onda de indignação a subir a cada minuto que o FC Porto não conseguia nem tentava com grande afinco atingir as redes do oponente. Eu, um puto, cheio de optimismo e joie de vivre, ainda acreditava que era possível vencer, bastava apenas que os rapazes mostrassem um bocadinho de esforço, mais uma corrida, mais um lance fortuito ou trabalhado, queria lá saber, que pusesse o resultado a nosso favor e acalmasse as hostes. Ao meu lado, um dos meus companheiros de todos os jogos, muito menos tranquilo, enervava-se a cada passe falhado, gritava com os consecutivos pontapés de baliza oferecidos ao inimigo, insultava um e outro e ainda outro e nem conseguia ficar sentado no cimento que na altura coloria com aquele tom cinzento que se igualava à alma dele naquele momento.
Terminado o jogo, zero-zero, voa o meu amigo para o corredor no fundo da bancada. Um bom salto depois e está nas redes, agarrado ao alumínio forrado a pvc com uma fúria que endoidece o espírito e corrói o âmago de qualquer adepto que acaba de perder um jogo, porque um empate em casa era uma derrota, o desperdício de pontos perante seres inferiores era um valente murro no estômago de qualquer portista digno do seu nome. E gritou, diatribes múltiplas saíam da sua boca como tivesse acabado de levar com um balde de estrume na nuca, amaldiçoando treinador, jogadores, médicos, dirigentes, todos os que lhe passavam pela frente sentiam a força da sua voz e o volume da sua infelicidade. Os stewards…havia stewards nos 90s? nem me lembro, para ser sincero…mas fossem seguranças, polícias, cães, guardas, o exército e a marinha inglesa não o conseguiam tirar dali e o túnel, ali tão perto, sofreu com os gritos de um adolescente que não acreditava no que tinha acabado de acontecer. Eu, de pé mas longe das vedações, olhava para ele, despreocupado. Hás-de sair daí a bem ou a mal e nada te vai acontecer, pensei, mas o resultado, aquele teimoso zero-zero, fica marcado nas nossas almas até à eternidade.
Lembro-me tão bem desse episódio e não deixo de pensar nele de cada vez que saio do Dragão depois de um jogo como o de Domingo. Já passei pela idade da irreverência e raramente fui dado a episódios desse género. Sou nervoso a ver o jogo e chateio-me, grito, mas pouco mais. Mas às vezes olho ainda para essa imagem na minha mente e imagino que quase vinte anos depois, a ideia mantém-se: há jogos e há jogadores dentro desses jogos que não merecem o aplauso. O que merecem são os gritos de um adepto que não pode fazer mais do que vê-los sem chama, sem alma, sem fibra para sequer tentar dar a volta a situações que estão ao alcance deles.
Domingo foi um dia negro e pior do que o resultado foi a forma como ele surgiu. Ou não surgiu. Take your pick.
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